O aniversário passou. As sentinelas do palácio advertiram que o poeta não trazia manuscrito. (…) Eu dou-te o valor que te faz falta – declarou o Rei. O poeta disse o poema. Era só uma linha.
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No final o Rei falou.
- Aceito o teu labor. É outra vitória. Atribuíste a cada vocábulo a sua genuína aceção e a cada nome substantivo o epíteto que lhe deram os primeiros poetas. Não há em toda a loa uma só imagem que não tenha usado os clássicos. A guerra é o formoso tecido de homem e a água da espada é o sangue. O mar tem o seu deus e as nuvens predizem o provir. Manejaste com destreza a rima, a aliteração, a assonância, as quantidades, os artifícios da douta retórica, a sábia alteração dos metros. Se viesse a perder-se toda a literatura da Irlanda – omen absit – ela poderia reconstruir-se sem prejuízo com a tua clássica ode. Trinta escribas vão trancrevê-la doze vezes.
Houve um silêncio e prosseguiu:
- Tudo está bem e não obstante nada se passou. Nos pulsos não corre mais depressa o sangue. As mãos não buscaram os arcos. Ninguém empalideceu. Ninguém proferiu um grito de batalha, ninguém opôs o peito aos viquingues. Dentro do prazo de um ano aplaudiremos outra loa, poeta. Em sinal da nossa aprovação, toma este espelho que é de prata.
- Dou graças e compreendo – disse o poeta.
As estrelas do céu retomaram o seu claro rumo. Outra vez cantou o rouxinol nos bosques dos saxões e o poeta regressou com o seu códice, menos longo que o anterior. Não o repetiu de memória; leu-o com visível insegurança, omitindo certas passagens, como se ele próprio não as entendesse de todo ou não quisesse profaná-las. A página era estranha. Não era a descrição da batalha, era a batalha. Na sua desordem bélica agitavam-se o Deus que é Três e é Uno, os numes pagãos da Irlanda e os que combateriam, centenas de anos depois, no princípio da Edda Maior. A forma não era menos curiosa. Um substantivo singular podia reger um verbo plural. As preposições eram alheias às normas comuns. A aspereza alternava com a doçura. As metáforas eram arbitrárias ou assim o pareciam.
O Rei trocou algumas palavras com os homens de letras que o rodeavam e falou desta maneira:
- Da tua primeira loa pude afirmar que era um feliz resumo de quanto se há cantado na Irlanda. Esta supera todo o anterior e também o aniquila. Suspende, maravilha e deslumbra. Não a merecerão os ignaros, mas sim os doutos, os raros. Um cofre de marfim será a custódia do único exemplar. Da pena que produziu obra tão eminente podemos esperar uma obra ainda mais elevada.
Acrescentou com um sorriso:
- Somos figuras de uma fábula e é justo recordar que nas fábulas prima o número três.
O poeta atreveu-se a murmurar:
- Os três dons do feiticeiro, as tríadas e a indubitável Trindade.
O Rei prosseguiu:
- Como prenda da nossa aprovação, toma esta máscara de ouro.
- Entendi e agradeço – disse o poeta.
O aniversário passou. As sentinelas do palácio advertiram que o poeta não trazia manuscrito. Não sem espanto o Rei fitou-o; era quase outro. Algo, que não era o tempo, havia sulcado e transformado as suas feições. Os olhos pareceiam olhar muito longe ou ter ficado cegos. O poeta rogou-lhe que trocasse umas palavras com ele. Os escravos abandonaram a câmara.
- Não executaste a ode? – perguntou o Rei.
- Sim – disse tristemente o poeta. – Oxalá Cristo Nosso Senhor mo tivesse proibido.
- Podes repeti-la?
- Não me atrevo.
- Eu dou-te o valor que te faz falta – declarou o Rei.
O poeta disse o poema. Era só uma linha.
[…]»
Jorge Luis Borges. O Livro de Areia. Quetzal, pp 76-79.