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Como vem sendo corrente desde que deixámos de fazer castelos e apodreceram as caravelas que iam para além da Taprobana, estamos outra vez em crise, e as crises, por serem mundos cheios de oportunidades para os oportunistas das crises, tanto se prestam à melancolia, como à interrogação, à negação, ao conformismo ou à fuga.
O passado mítico é um bom lugar para tentar exorcizar tempos de angústia e de incompreensão sobre o que se passa. O discurso comum pretende transformar o presente numa inevitabilidade escondida na complexidade das crises sistémicas e globais, embrulhadas em ralhetes morais-liberais sobre o que acontece aos gastadores inveterados, organizando-o numa narrativa tecnocrática cheia de folhas de cálculo e discursos monocórdicos em “economês”. Perdido o Império, com a Europa feita em cacos e em vias de se transformar outra vez num saco de gatos, instaurado o casino financeiro (…) viciado em pôr a roleta do capitalismo global a alimentar os jogadores, vai-se perdendo o Estado e diluindo a Nação, já há muito espalhada nos quatro cantos do Mundo, ora festejando as glórias da bandeira portuguesa nos seus heróis populares ou eruditos, ora mirrando com saudades da família, dos amigos, do sol, dos pastéis e da boa comida.
Antes, eram os tipicismos regionais, longamente romanceados e ilustrados pelas suas paisagens, que forneciam um veneno doce e tóxico para ilustrar a invencível alma lusitana e os seus heróis. Agora, sem o xarope se ter esgotado, as paisagens desconstroem-se e atropelam-se nas suas próprias mitologias: a flor das amendoeiras do Algarve não é compatível com a praia, e a banalização do resort tropical ou do golfe triturador de falésias vai mal com ambientes protegidos, figos secos com amêndoas, shots, cataplanas, comida rápida, voos low-cost, parques aquáticos, vivendas a esmo e serras a arder. Um desassossego. Se a paisagem e as suas narrativas e representações são constitutivos poderosos da identidade, que identidade se construirá que não seja a própria sensação de perda de identidade?
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Álvaro Domingues in Volta a Portugal. Uma Narrativa para a Paisagem. Ed., Contraponto, pp 25-26.