Tempo de (re)leituras... Ler ou reler (ver também aqui e aqui) H. Hesse parece-me sempre um convite a explorar as rugosidades das coisas ditas perfeitas...
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- Vives no convento?
- Sou aluno da escola. Mas não fico lá mais. Posso vir ter contigo, Lise? Onde moras, onde é a tua casa?
- Não moro em parte alguma, meu tesouro. Não me queres dizer o teu nome? Chamas-te Goldmundo? Dá-me mais um beijo, meu pequeno Goldmundo, depois podes ir.
- Não moras em parte alguma? Onde dormes, então?
- Durmo contigo, se quiseres, na floresta ou sobre o feno. Vens hoje à noite?
- Venho. Mas aonde? Onde te encontro?
- Sabes imitar o pio da coruja?
- Nunca experimentei.
- Experimenta.
Goldmundo tentou. Ela riu-se e achou que estava bem.
- Sai esta noite do convento e imita o pio da coruja; ficarei aqui nas imediações. Gostas de mim, Goldmundo, meu menino?
[...]
- E agora, diz-me lá – concluiu violentamente – que mundo é este em que vivemos? Não é um inferno? Não é odioso e abominável?
- Sem dúvida, o mundo não é outra coisa.
- Ah, sim – exclamou Gldmundo exaltado – e quantas vezes outrora me afirmaste que o mundo era divino, que era uma harmonia de esferas, no centro das quais se erguia o trono do Criador, que a existência era boa, etc. Dizias tu que o afirmavam Aristóteles ou S. Tomás. Estou curioso por ouvir-te esclarecer esta contradição.
Narciso riu-se.
- Tens uma memória espantosa, Goldmundo e, contudo, desta vez traiu-te um pouco. Sempre venerei a perfeição do Criador, mas nunca a da criação. Nunca esqueci o mal do mundo. Nenhum autêntico pensador, meu caro, jamais afirmou que a vida na terra fosse harmoniosa e justa ou que homem fosse bom. Pelo contrário, já na Sagrada Escritura vem expressamente dito que os desígnios e aspirações da alma humana são perversos, e todos os dias vemos essa asserção confirmada.
- Muito bem. Descubro finalmente como é que vós, os homens doutos, concebeis as coisas. O homem é mau, a vida na terra é abominável e imunda; admitem-no. Mas, para além, algures nos vossos sistemas e tratados, há justiça e perfeição. Existem, podem demonstrar-se, mas não se faz uso delas.
[…]»
Hermann Hesse. Narciso e Goldmundo, pp. 74 e 259, Guimarães & C.ª Editores, 2ª ed., 1981.