Sexta-feira, 7 de Dezembro de 2018

Guião para um filme tragicómico - take 1

Local de filmagem: gabinete de reuniões do Conselho Europeu, em Bruxelas (como não existe sede do Eurogrupo, é escolhido um ao acaso)

Ambiente: Tipo clandestino - mobiliário austero e iluminação artificial, difusa, com lugares na penumbra.

Personagens: Todos os ministros das finanças do euro, vestidos de fato cinzento-escuro e gravata vermelha, e ainda o vice-presidente da CE, o comissário dos assuntos económicos e financeiros, o presidente do BCE e o diretor do MEE, estes vestidos de fato azul escuro e gravata branca.

Take 1 (travelling pela sala de reuniões antes do início da reunião. Especial atenção à austeridade do ambiente e às facies pálidas das personagens)

 (Centeno) - toca a sineta com um riso infantil…

(Centeno) - volta a tocar a sineta e olha com ar reprovador para Giovani Tria, ainda de pé junto da cadeira

(Giovani Tria para Centeno, com o olhar distante, fixo no vazio) – Estou como a torre de Pisa: ainda de pé! (esboça um sorriso, mas perante o silêncio dos restantes acaba por se sentar. Centeno sorri, sorriso infantil!)

(Centeno dá a palavra a Moscovici que inicia um longo discurso) – Sr. Presidente, caros colegas (sorri para os de gravata vermelha) temos que dar umas palmatoadas aqui no camarada Tria (volta a sorrir sem levantar os olhos e por isso não percebeu o esgar de dor do italiano). As regras são regras e como tal têm que ser cumpridas sob risco do três ser ultrapassado ou, na hipótese otimista, ficar mais de cinquenta por cento acima do dois. Coisa que não acredito, já que o dois é um número traiçoeiro que quando inchado se parece mais com o três. Temos que abater o três, custe o que custar…

(Tria, com voz colérica) – E sou só eu que valho menos cinquenta por cento que a diferença entre o dois e o três (faz uma pausa fazendo cálculos mentais). Este cenário não entra em consideração com a hipótese do três também poder inchar e ficar um oito ou um infinito (nova pausa) … um oito deitado…

(Scholz) – morto! (a luz ténue acentua o rosto hirto do personagem)

(Silêncio, longo silêncio… Luz ténue sobre rostos muito brancos, casacos escuros que apenas revelam a silhueta e gravatas berrantes – vermelhas e brancas - como cordas ao pescoço)

(Centeno) – então?!, não é preciso tanto dramatismo (sorriso cândido, infantil)

(Tria, outra vez com voz colérica) – E o senhor presidente, e Portugal? A raiz quadrada do três, somada à diferença do três com o dois, mesmo considerando o grau de liberdade que concede ao um, a si próprio, convenhamos, (e olha Centeno de frente) pelas minhas contas também tende para um oito deitado!

(Centeno sorri, sorriso infantil, ingénuo. Olha para o outro lado da mesa…)

(Mourinho, afagando com a mão direita a gravata vermelha e olhando-a com medo que a cor desbote) – Mas nós temos as contas certas! Um é um e menos o coeficiente de cagança…, perdão, de cagaço, fica quase zero…

(Tsakalotos) – Coeficiente de cagaço?!, mas isso é de engenheiro, camarada…  (a cadeira polaca rangeu, rosnar na noite sem lua e a sala ficou mais escura)  Aqui tratamos de finanças!

(Mourinho, enrubescido como as crianças repreendidas, afagando novamente a gravata vermelha, que parecia menos vermelha, ignorando o grego, dirigindo-se a Centeno e repetindo) – Sr. Presidente, as nossas contas estão certas: um é um e menos o coeficiente de … segurança (e repetiu) de segurança, fica quase zero! Quase zero, o número perfeito…, perfeito! Deitado ou não, é zero! Zero!

(Centeno, sorriso, sorriso infantil, babado com o bombom do Mourinho)

(Silêncio, longo silêncio. Travelling sobre a mesa iluminada, os copos cheios de água, cristalinos, e saída para um grande plano do quadro pendurado na parede - uma reprodução de um frame da Roma de Fellini. Saída lenta pela janela e zoom para Manneken Pis, ouvindo-se em fundo a sineta e a voz indecifrável de Centeno).

 


publicado por Fernando Delgado às 01:46
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