«A função social da propriedade foi uma “invenção” de León Duguit, que num conjunto de seis conferências proferidas na Universidade de Buenos Aires, em 1911, explanou o conceito e o filiou no princípio da solidariedade. Duguit parte do pressuposto de que a autonomia proclamada pelo Estado liberal, que fecha o indivíduo em si próprio, não é natural; é antes a interrelação entre as pessoas que está na base do conceito de sociedade, interrelação essa que se traduz na solidariedade. A propriedade é um conceito que pressupõe o indivíduo como uma ilha, quando a pessoa é, ao contrário, essencialmente gregária e interdependente. Logo, a propriedade não deve servir apenas interesses individuais, mas sim ser “produtiva”, numa lógica de interesse comunitário. Note-se que o pensamento de Duguit não tem qualquer filiação marxista ou socialista, uma vez que não preconiza nem a apropriação colectiva de meios de produção nem a propriedade exclusivamente pública. Duguit apenas acentua a necessidade de transformar uma riqueza individual num benefício também colectivo.
A teoria de Duguit influenciou várias Constituições, de forma expressa. A primeira delas foi a Constituição do México, de 1917, em cujo artigo 27º se dotava o poder público de competência para impor restrições ao direito de propriedade, “em benefício social” e em prol de uma distribuição equitativa de recursos. Na Europa, foi a Constituição de Weimar, de 1919, a pioneira na consagração do princípio da função social da propriedade — o seu artigo 153º dispunha o seguinte: “A propriedade é garantida pela Constituição. Os seus conteúdo e limites serão fixados por lei. A propriedade acarreta obrigações. O seu uso deve fazer-se igualmente no interesse geral”. Este preceito influenciou marcadamente a Lei Fundamental de Bona, de 1949, que afirma, no n.º 2 do artigo 14º, que “A propriedade obriga. O seu uso deve ao mesmo tempo servir o bem da comunidade”.
Paralelamente, a Constituição italiana de 1947 estabelece, no artigo 42.º, que “A propriedade privada é reconhecida e garantida pela lei, que determina os seus modos de aquisição, gozo e limites com o fim de assegurar a sua função social e torná-la acessível a todos”. Por seu turno, a Constituição espanhola de 1978 dita, no n.º 2 do artigo 33º, que “A função social destes direitos [à herança e à propriedade] limita os seus conteúdos, em conformidade com a lei”. Já a Constituição portuguesa de 1976 (doravante, CRP) não utiliza a expressão, mas isso não impediu o Tribunal Constitucional de afirmar a sua valência, no Acórdão 76/85, onde se escreveu que “[...] a velha concepção clássica da propriedade, o jus utendi ac abutendi individualista e liberal, foi, nomeadamente, nas últimas décadas deste século, cedendo o passo a uma concepção nova daquele direito em que avulta a sua função social”.
[…]
Ou seja, […], um proprietário já identificado ou a identificar que revele um comportamento negligente terá, em regra, três opções: passar a gerir adequadamente as suas terras; integrá-las num modelo de gestão colectiva; ou ceder as terras para arrendamento pela Bolsa/Banco de Terras. Caso não acolha nenhuma das três, poderá ver agravadas as suas obrigações fiscais e, no limite, ser forçado a aceitar um arrendamento compulsivo da sua propriedade pela entidade gestora da Bolsa/Banco de terras. Hipóteses como a expropriação deverão ficar reservadas para situações excepcionais como, por exemplo, aquelas em que a terra não dê garantias de produtividade, e se torne por isso inatractiva; ou em que a morfologia do terreno seja rebelde aos aproveitamentos agrícolas mais adequados e não permita soluções de integração em sistemas de gestão colectiva; ou para situações em que sobre a terra descuidada recaiam vinculações ecológicas que inibam aproveitamentos rentáveis, mas que em razão da sua localização em área de risco elevado de incêndio deva estar limpa de materiais combustíveis — transitando então tal tarefa, por força da expropriação, para mãos públicas.»
In Reflexões (a quente) sobre o princípio da função social da propriedade
Carla Amado Gomes, Professora Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
e-Pública Vol. 4 No. 3, Maio 2018
«As florestas são um recurso ambiental que se apresenta no plano legal e na consciência colectiva como um importante bem jurídico carecido de tutela, não só porque pode ser objecto de apropriação e de aproveitamento individualizado, gerando rendimento, mas também porque desempenha funções essenciais à preservação e promoção de um ambiente equilibrado e sadio.
Se esta qualificação não suscita quaisquer dúvidas ou resistências, quando se trata de indagar qual a tutela que deve ser deferida a este específico bem jurídico, a comunhão de ideias quebra-se e, quando muito, consegue-se uma difícil convergência de posições.
E isto porque, ao contrário do que acontece com outros bens jurídicos mais fluídos ou menos tangíveis como a água e o ar, as florestas (e, na mesma ordem de ideias, os solos), as florestas, ao permitirem um domínio mais imediato e concreto pelo Homem, são tradicionalmente alvo de pretensões e intervenções que escapam de forma quase incontrolável às exigências de um desenvolvimento sustentado.
E se é certo que, com Gérard Buttoud, a política pública das florestas deve garantir que todas as utilizações florestais possam estar, ainda que de forma diferenciada, ao serviço de todos os utentes, de uma forma que garanta a perenidade dos recursos a longo prazo, nem sempre se consegue “ordenar” devidamente esta panóplia de interesses, procedendo a uma sua adequada composição e territorialização.
A complexidade e dificuldade da tarefa começa logo quando se pergunta: afinal, ordenar o quê?
[…]»
In (Re)ordenamento florestal: alguns instrumentos de conformação da ocupação florestal em Portugal
Dulce Lopes, Professora Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
e-Pública Vol. 4 No. 3, Maio 2018