O Miguel decidiu escrever sobre pouco mais de uma dúzia de episódios datados, numa cronologia que ele próprio apelidou da infância para o mundo. Tudo bem, não só na revelação do seu mundo (do que ele quis revelar!), mas também na forma ligeira e escorreita da escrita (o livro lê-se em duas golfadas…).
O problema não está nas estórias e nas personagens, algumas bem conhecidas. O problema está em, a partir de cada uma das estórias, fazer generalizações e tirar conclusões de âmbito muito mais vasto. Uma estória não determina a história, é apenas um acontecimento que isolado significa muito pouco, embora esta tendência de generalização seja sobejamente conhecida nos comentários televisivos...
Porque gosto da escrita do Miguel (que vontade de reler No teu deserto), irrita-me esta forma abusivamente conclusiva de relatar fatos (um pouco à semelhança dos contos da escola em que no fim nos perguntavam “que lição tirar?” ou “qual é a moral da história?”), o que me leva a transcrever do livro uma simples receita culinária – a que posso chamar como assar e comer sardinhas -, que já conhecia, embora sem o pormenor dos bocados da tripa, mas que o MST, mais uma vez, não resistiu a considerar como "a mais deliciosa tosta que o ser humano já inventou" :
«[…]
o lume tem de doirar e não queimar, as sardinhas; não se acompanha com batatas, apenas salada, para desenjoar, de vez em quando; não há pratos nem talheres: as sardinhas comem-se em cima de pão, com os dedos retira-se a tripa do costado e a pele mais grossa, depois come-se metade de uma só dentada, até à espinha, virando-a a seguir para fazer o mesmo do outro lado; no fim, coloca-se o pão, untado do suco das sardinhas e com bocados de tripa, a torrar no lume e come-se a mais deliciosa tosta que o ser humano já inventou»
[…]»
Miguel Sousa Tavares. Cebola crua com sal e broa. Da infância para o mundo. Clube do autor, 1ª ed., maio, 2018, pp 350.