o que verdadeiramente me preocupa não é o agricultor septuagenário que vende hortaliças na feira da Malveira, que não sabe ler nem escrever, que cabisbaixo olha as rugas das mãos - “tenho que passar a factura de um molho de nabos e uma abóbora” -, quando unicamente quer juntar uns tostões à sua magra reforma;
nem o taberneiro da aldeia que juntou uns cobres em França e, voltando à sua terra, abriu uma tasca onde serve uns copos de vinho, e também umas colas, diga-se, e que por entre uns merde parisiense, balbucia - “porra!, queres a factura do quê?, com uma goela dessas nem um monte de papel higiénico chegava…" - aos clientes que não são mais que companheiros de fins de tarde, que já merece descansar, descansar da vida, já merece!;
nem o cabeleireiro que compõe vaidades em cabeças rolantes, em equilíbrios de loucura estática, como um artista de circo entre feras que rosnam inconfidências boçais - “ai querida, quer mesmo o ticket?”;
nem o senhor João, sim, senhor por extenso, do Café Central, ali bem no centro da cidade como facilmente se compreende, que não tem nenhuma dúvida – “aqui tem a sua facturinha, senhor doutor (também por extenso, agora por todos os motivos), são cinquenta e cinco cêntimos do café e cinco cêntimos do cheirinho…, mas está só o café, o cheirinho, sabe, é da casa e não tem IVA, também não servia de nada, doutor, e também ninguém precisa de saber que o senhor doutor gosta de café com cheirinho” -, sorriso malandro, mas cândido, bem educado, profissional;
nem o Zé da oficina, mãos gordas, sujas, unhas de escaravelho – “factura, com estas mãos, até lhe sujava a carteira” -, que mal sabe o que é o cheiro da terra molhada em pleno Verão, o que é não saber o que é a vida, a vida que começa, mesmo sendo mentira.
O que me preocupa é a irrelevância de tudo isto. O que me preocupa é esta doutrina do “faz de conta!”, da aparência, do justicismo bacoco. O que me preocupa é englobar estes actos, estas profissões, estas formas de vida, como integrantes da tenebrosa economia paralela. É confundir tudo. É não ter a noção de que, na maioria dos casos, não estamos em presença de economia paralela, nem sequer de economia - economia paralela é outra coisa, tem outros protagonistas, exige outros métodos, exige coragem. É admitir que tudo pode ser regulado, controlado, taxado. É admitir que estamos vigiados e o consentimos (as facturas, com identificação, permitem, se assim se entender, rastrear o nosso quotidiano!), num desprezo total pela liberdade individual.
O que me preocupa não é a incompetência de alguns. É a indiferença e o silêncio de todos os outros.