Fiz as pazes com a escrita de A. Lobo Antunes: desisti!
Desisti de tentar encontrar o fio à meada, de entender as personagens, de encontrar os caminhos, de decifrar a história contada.
Assumo, assim, que, ler Lobo Antunes é pressupor a existência de uma escrita anárquica, magistralmente anarca. Confesso que, para ler Lobo Antunes, é necessário esquecer que existem outras escritas, muito arrumadinhas, muito lógicas, muito cheias de conteúdo… Cedo à tentação de ler sem esperar encontrar nada para além do ato de leitura - é como caminhar sem partida ou chegada.
E como são suficientes as palavras!...
(Há uns bons anos, muitos anos, “aprendi” a gostar de jazz, e ainda hoje pressinto na anarquia dos sons – se calhar, apenas desconhecimento de leigo… - uma forma suprema de música!)
«[…]
Na altura do Natal a coluna de reabastecimento trouxe quatro mulheres metidas entre os caixotes da última mercedes, não muito novas, não muito bonitas, não muito limpas claro, de quico na cabeça e camuflados grandes demais para elas, olhando a medo o capim e as árvores dos dois lados da picada, o meu avô para o meu pai baixinho, sem levantar a arma, passando um dedo lento entre as orelhas da cadela
- Não são perdizes aquilo é um ouriço a vigiar a toca
com os primeiros besoiros já, as primeiras borboletas, aquela espécie de diferença na nuca que antecede o calor, soldados de ambos os lados no interior da mata e por vezes raminhos esmagados, protestos de caniços, dois ou três militares à frente a picarem, uma lata amolgada no chão, um céu de chuva a oeste muito longe ainda, a seguir à primeira curva a ladeira que conduzia ao arame onde se agitavam vespas num charco de água parada, a minha filha numa pedra de quintal sem falar comigo nem me olhar, em pequena sentava-a nos joelhos para cima e para baixo
- Cavalinho cavalinho
e ela a rir de prazer, de medo e do prazer do medo, ela contente, com o cabelo para um lado e para o outro e a falta de um dente de leite junto ao incisivo, nenhuma ruga meu Deus, ainda nenhuma ruga, a pele tão lisa, covinhas nas costas das mãos, covinhas nos cotovelos, covinhas nas bochechas
- Mais
os dedos dos pés pequeninos, redondos, os olhos castanhos, não bem castanhos, pintinhas verdes e agora infelizmente óculos, a boca séria, fechada, com um parêntesis de cada lado, o que te sucedeu, o que me sucedeu, a coluna entrou no arame camioneta a camioneta, com os pretos dos quimbos a espreitarem-na de longe e os soldados a saltarem da caixa, as gê três um som mais forte que as calaches, sempre que punha a minha filha às cavalitas despenteava-me
- Corra
e eu a segurar-lhe os tornozelos com medo de tropeçar na horta e cair, um lacrau apareceu numa pedra e esticou logo a cauda, os tropas espiavam as mulheres de longe enquanto o vagomestre ajudava a fixar, martelando-os, os paus de duas barracas de lona com colchões secos lá dentro a que faltava palha, na coluna um saquito de correio sem nenhuma carta para mim, a minha mulher escrevia-me uma vez por semana, envergonhada da letra
- É tão feia
onde contava não importa o quê para encher o papel comigo a pensar no seu corpo, será que ainda te lembras do meu, as mulheres que o capitão veio observar, com um alferes atrás, três morenas e uma quase albina, magríssima
- Menos mal que o ano passado vá lá pelo menos nenhuma delas é preta
despiram-se nas barracas enquanto um sargento distribuía senhas aos militares
- Cinco minutos para despacharem o serviço que elas têm de se ir embora ainda hoje
e o meu avô aborrecido porque nenhuma perdiz, a cadela pôs-se de pé, girou sobre si mesma e tornou a deitar-se, de focinho poisado num dos nossos sapatos, à espera, sentia-se a respiração dela entre a impaciência e o sono, notava-se-lhe uma carraça na orelha direita apesar da minha mãe às vezes pegar num desperdício e a esfregar com petróleo, tinha que se deixar uma noite lá fora porque o cheiro
- Cavalinho cavalinho
se pregava a tudo, até ao cesto da roupa, o meu avô a tossir
- Raios partam o bicho
dado que o pivete lhe incomodava os pulmões, os soldados formavam bicha diante das tendas com a senha numerada a lápis na mão
- Ao fim de cinco minutos chegas aqui mesmo em pelo veste-te cá fora e pronto
pergunto-me se a minha filha se lembra dos meus joelhos, se calhar sim, se calhar não, quase de certeza esqueceu-os, agora volta e meia doem-me no inverno, estou muito bem a andar e uma das pernas falta-me, desparece da tíbia para baixo e a seguir regressa mas mais fraca, a tremer, o meu filho preocupado
- O que é isso?
[…]»
António Lobo Antunes. Até que as pedras se tornem mais leves que a água. D. Quixote, 1ª ed. Pp 241-243.