Há quem diga que quando o tempo sobra há espaço para os livros que ficaram por ler... Era bom que assim fosse, mas não é! A pandemia ocupa o tempo e o espaço, não sobra nada (como na Tragédia de Hamlet, o resto é silêncio) .
A ausência de constantes compromissos profissionais, de agendas rígidas, de stress e, como se costuma dizer, do dia-a-dia preenchido, é uma ilusão. Não fomos feitos ou formatados (ou educados?!) para este nova realidade. Precisamos de compromissos, de agendas e de stress para ludibriar as rotinas e ganhar algum tempo para outras coisas, como ler livros. É assim a natureza humana - buscamos sofregamente algumas coisas como contraponto a outras coisas de que não gostamos, ou que, gostando, nos limitam o tempo e o espaço. Precisamos de não ter tempo para dar valor ao tempo.
Sinto que a pandemia apagou da memória esta busca do contraponto emocional e os livros não escaparam a esta decapitação. A Crónica de Um Vendedor de Sangue, de Yu Hua e Magalhães, o homem e o seu feito, de Stefan Zweig, são algumas das leituras neste longo interregno, mas não passam de exceções num quotidiano longo, aborrecido e estupidamente inútil. Restam, como notas de rodapé, um retrato da revolução cultural de Mao - simples, sem adjetivos e juízos morais inúteis (no livro de Yu Hua) e uma biografia de Magalhães, com várias inexatidões históricas (?!...), ou apenas excesso de entusiasmo do autor (no livro de S. Zweig).
Pouco, muito pouco!
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Serviu rei e país sob todas as formas: por mar e por terra, em todas as estações do ano e em todas as zonas marítimas, no meio da geada e sob um céu tórrido. Porém, servir é coisa de jovens, e agora, com quase trinta e seis anos, Magalhães decide que já se sacrificou o suficiente pelos interesses e pela glória dos outros. Como acontece a qualquer criador, Magalhães sente media in vita a necessidade de se realizar pessoalmente, de ser responsável por si próprio. A pátria abandonou-o, desfez a ligação com as suas tarefas e obrigações - tanto melhor: agora está livre. Como tantas vezes sucede, o punho que tenta repelir um homem, impele-o, na verdade, para dentro de si mesmo. [...]»
Stefan Zweig in Magalhães, o homem e o seu feito. Assírio e Alvim, 2ª ed., pp 67-68.