Sexta-feira, 7 de Dezembro de 2018

Guião para um filme tragicómico - take 2

Local de filmagem: Terreiro do Paço

Ambiente: Urbano, agitado, multiracial, multicultural

Personagens: Ministro das Finanças e Secretário de Estado Adjunto e das Finanças

Take 2 (panorâmico sobre o Terreiro do Paço, com oTejo ao fundo, zoom para a estátua de D. José I, pormenor dos pombos sobre o cavalo e entrada pelas arcadas do ministério das finanças com alteração dos níveis de luz e ruído, passando do mundano ao reservado)

(Mourinho, nas escadas do ministério das finanças parece aguardar Centeno) - bom dia caro ministro..., a sua secretária tem uma carta urgente...

(Centeno) - uma carta, urgente? de quem?

(Mourinho) -  do sr. ministro, de si!

(Centeno) - de mim? (rugas fugidias na testa contrastam com o tom infantil da pergunta)

(Mourinho) - sim! diz que existem grandes riscos no orçamento..., o Primeiro já ligou a perguntar o que se passa...

(Centeno) - ah, já percebi, do presidente do Eurogrupo... (sorriso malandro, mas infantil). A carta é para o Secretário de Estado, é para si!

(Mourinho sem convicção) - ... mas está dirigida ao sr. ministro! 

(Centeno) - não...,  O presidente do Eurogrupo não escreve ao ministro das finanças, ouve-o, dorme com ele! E quando ouve, discorda dele... E quando dorme... (sorriso malandro, lascivo, mas infantil)

(Mourinho desalentado) - mas então o que faço, o que digo ao Primeiro?

(Centeno, com voz pausada, solene) – diz-lhe que o ministro das finanças ouve o presidente do eurogrupo e discorda dele e que o presidente do eurogrupo escreve ao ministro das finanças e ..., e vice-versa...

(Mourinho baralhado) - vice-versa?!...

(Centeno) - sim!, vice aqui, versa lá, em Bruxelas!... vice-versa...

(Mourinho, a morder o dedo mindinho e a olhar para a ponta dos sapatos lustrosos parece meditar e falar para si próprio...)

(Centeno numa decisão rápida) - deixa, eu falo com o Primeiro! Ele ouve-me (cala-se, sobe as escadas,... e ainda murmura para si próprio) - ... se calhar escrevo-lhe uma carta..., ou vice-versa...

Corta!!!

 


publicado por Fernando Delgado às 23:31
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Guião para um filme tragicómico - take 1

Local de filmagem: gabinete de reuniões do Conselho Europeu, em Bruxelas (como não existe sede do Eurogrupo, é escolhido um ao acaso)

Ambiente: Tipo clandestino - mobiliário austero e iluminação artificial, difusa, com lugares na penumbra.

Personagens: Todos os ministros das finanças do euro, vestidos de fato cinzento-escuro e gravata vermelha, e ainda o vice-presidente da CE, o comissário dos assuntos económicos e financeiros, o presidente do BCE e o diretor do MEE, estes vestidos de fato azul escuro e gravata branca.

Take 1 (travelling pela sala de reuniões antes do início da reunião. Especial atenção à austeridade do ambiente e às facies pálidas das personagens)

 (Centeno) - toca a sineta com um riso infantil…

(Centeno) - volta a tocar a sineta e olha com ar reprovador para Giovani Tria, ainda de pé junto da cadeira

(Giovani Tria para Centeno, com o olhar distante, fixo no vazio) – Estou como a torre de Pisa: ainda de pé! (esboça um sorriso, mas perante o silêncio dos restantes acaba por se sentar. Centeno sorri, sorriso infantil!)

(Centeno dá a palavra a Moscovici que inicia um longo discurso) – Sr. Presidente, caros colegas (sorri para os de gravata vermelha) temos que dar umas palmatoadas aqui no camarada Tria (volta a sorrir sem levantar os olhos e por isso não percebeu o esgar de dor do italiano). As regras são regras e como tal têm que ser cumpridas sob risco do três ser ultrapassado ou, na hipótese otimista, ficar mais de cinquenta por cento acima do dois. Coisa que não acredito, já que o dois é um número traiçoeiro que quando inchado se parece mais com o três. Temos que abater o três, custe o que custar…

(Tria, com voz colérica) – E sou só eu que valho menos cinquenta por cento que a diferença entre o dois e o três (faz uma pausa fazendo cálculos mentais). Este cenário não entra em consideração com a hipótese do três também poder inchar e ficar um oito ou um infinito (nova pausa) … um oito deitado…

(Scholz) – morto! (a luz ténue acentua o rosto hirto do personagem)

(Silêncio, longo silêncio… Luz ténue sobre rostos muito brancos, casacos escuros que apenas revelam a silhueta e gravatas berrantes – vermelhas e brancas - como cordas ao pescoço)

(Centeno) – então?!, não é preciso tanto dramatismo (sorriso cândido, infantil)

(Tria, outra vez com voz colérica) – E o senhor presidente, e Portugal? A raiz quadrada do três, somada à diferença do três com o dois, mesmo considerando o grau de liberdade que concede ao um, a si próprio, convenhamos, (e olha Centeno de frente) pelas minhas contas também tende para um oito deitado!

(Centeno sorri, sorriso infantil, ingénuo. Olha para o outro lado da mesa…)

(Mourinho, afagando com a mão direita a gravata vermelha e olhando-a com medo que a cor desbote) – Mas nós temos as contas certas! Um é um e menos o coeficiente de cagança…, perdão, de cagaço, fica quase zero…

(Tsakalotos) – Coeficiente de cagaço?!, mas isso é de engenheiro, camarada…  (a cadeira polaca rangeu, rosnar na noite sem lua e a sala ficou mais escura)  Aqui tratamos de finanças!

(Mourinho, enrubescido como as crianças repreendidas, afagando novamente a gravata vermelha, que parecia menos vermelha, ignorando o grego, dirigindo-se a Centeno e repetindo) – Sr. Presidente, as nossas contas estão certas: um é um e menos o coeficiente de … segurança (e repetiu) de segurança, fica quase zero! Quase zero, o número perfeito…, perfeito! Deitado ou não, é zero! Zero!

(Centeno, sorriso, sorriso infantil, babado com o bombom do Mourinho)

(Silêncio, longo silêncio. Travelling sobre a mesa iluminada, os copos cheios de água, cristalinos, e saída para um grande plano do quadro pendurado na parede - uma reprodução de um frame da Roma de Fellini. Saída lenta pela janela e zoom para Manneken Pis, ouvindo-se em fundo a sineta e a voz indecifrável de Centeno).

 


publicado por Fernando Delgado às 01:46
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Terça-feira, 2 de Janeiro de 2018

O envelhecimento é a acumulação de erros

a ave sobrevoou as águas calmas e de um ponto indecifrável cresceram círculos concêntricos que refletiam todo o explendor de cores vivas das asas do bico alongado da cauda em leque do universo de penas floridas e era o começo do dia do dia tão igual como desigual de tudo o que não vê não se toca cresce aparece e desaparece e aparentemente (não) e de certeza existe salta vive a partir de um ponto indecifrável

 

«Aurora era uma deusa grega da madrugada e de acordo com a mitologia apaixonou-se por um ser humano, um mortal chamado Titão. Ela queria que o amante mortal também fosse imortal. Então foi ter com Zeus, o pai dos deuses, e disse:  «Por favor, dá imortalidade ao meu amante.» Então Zeus disse: «Ok, ok, vou tornar o teu amante imortal.» Mas ela cometeu um erro enorme. Ao pedir a imortalidade, esqueceu-se de pedir a juventude eterna. Como consequência, o amante ficou cada vez mais velho, mais velho e mais velho sem nunca morrer.Quando tivermos a fonte da juventude, temos de garantir que, não só vamos viver para sempre, mas temos de aproveitar. Temos de viver para sempre num corpo que seja útil. E é aí que entra a loja do corpo humano...»

Michio Kaku – Físico. City College of New York. 10 segundos para o futuro – 2077. RTP1, 02.01.2018.

 

não era uma ave era um pássaro assustado que ia caindo na água e também não era um ponto indecifrável era o local exato em que o pássaro com medo defecou

 

«O envelhecimento é a acumulação de erros. Erros genéticos, erros celulares, erros moleculares. Mas erros do nosso corpo. Agora sabemos que sim, há mecanismos de correção dos erros, mas eventualmente também eles se desgastam. É por isso que morremos.»

Michio Kaku – Físico. City College of New York.  10 segundos para o futuro – 2077. RTP1, 02.01.2018.

 

e o pássaro voltou e poisou na beira do lago parecia cansado e assim de perto chamei-lhe ave e ele fugiu reconstruindo-se das cores vivas das asas do bico alongado da cauda em leque do universo de penas floridas sobre as águas

 


publicado por Fernando Delgado às 23:41
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Segunda-feira, 25 de Janeiro de 2016

Volta-de-lua

- Filho, hoje é dia de volta-de-lua, não devias podar as videiras...

- Hum?

- No meu tempo, os homens levavam uma pequena bacia com água e cinza que punham ao pé das videiras enquando andavam a podar. Quando acontece a volta-de-lua a cinza revolve-se e a água fica turva - não se pode podar mais! As videiras não dão cachos e o vinho estraga-se...

 (Entretanto Marcelo foi eleito presidente da república)

 Sem bacia com água e cinza, espero que as videiras dêem uvas e o vinho seja bom... 

 

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publicado por Fernando Delgado às 00:42
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Segunda-feira, 4 de Agosto de 2014

Notícias do casino

«Os portugueses viveram acima das suas possibilidades!»

Vitor Bento

 

(O itinerário não podia ser melhor escolhido: Angola, Miami, Líbia,... O enredo tem maus e bons, como qualquer enredo que se preze. Chamam aos primeiros bad e aos segundos novo - não é muito imaginativo, mas funciona. No fim, como sempre, o novo vence o bad. Também como sempre, alguns morrerão em nome de boas causas, em nome do bem, em nome do bom, do not bad. Haverá um veículo para o bad, conduzido pelo Máximo. Para o novo não consta que haja veículo, mas o herói tem nome: Bento. O budget atinge muitos milhões, como convém a qualquer grande história, com tão empolgante elenco. Registam-se as admiráveis interpretações do Ben e do Max, o grande patrocínio da Passos & Luís, SA e a magistral realização do Costa. O Zé, com ar desengonçado, barba por fazer e manguito firme, também entra em cena. À força, sem dar por isso, mas entra. Com um ar tão descomposto que tudo indica vir de qualquer farra acima das suas possibilidades. Faz parte do elenco dos bad's!

Entretanto os críticos destas artes desdobraram-se em elogios. O Marcelo acha que o enredo, os protagonistas e até o produtor e o realizador podem ser candidatos a um ou vários galos de barcelos (o equivalente português do óscar...) e o Mendes até anunciou que vai crescer o cabelo ao Ben, com indicação da data precisa de tal ocorrência e acrescentando que vai usar penteado tipo Bento - o da selecção nacional... O Castrim gritou, do fundo da campa, que os portugueses vivem abaixo das suas possibilidades!...)

(Ficha técnica. Produtores: Pedro Passos Coelho, Maria Luís Albuquerque; Realizador: Carlos Costa; Realizador adjunto: Carlos Tavares; Argumento: Ricardo Espírito Santo; Efeitos especiais: Paulo Portas; Actores: Vítor Bento, Luís Máximo Santos, Zé Povinho, outros; Críticos: Marcelo Rebelo de Sousa, Marques Mendes, Mário Castrim)

 

«O BES Angola, o banco de Miami e o líbio Aman Bank ficam no bad bank, segundo a decisão do Banco de Portugal conhecida nesta segunda-feira, que atribui ainda a este veículo 10 milhões de euros para ajudar a administração na recuperação de ativos. O Banco de Portugal tomou este domingo o controlo do BES e anunciou a sua separação num “banco bom”, denominado Novo Banco, e num “banco mau” (bad bank), na prática um veículo que fica com os ativos tóxicos do BES e cuja gestão foi nomeada pelo supervisor e regulador bancário.

Em comunicado hoje emitido, o supervisor e regulador bancário dá conta do que fica no bad bank. Além da totalidade das ações do próprio BES, ficam neste veículo a participação maioritária que o BES tinha no BES Angola, o banco norte-americano Espirito Santo Bank e o banco líbio Aman Bank. Ficam ainda no bad bank os “direitos de crédito” do BES sobre as holdings do Grupo Espírito Santo, caso da Espírito Santo International, ou seja, fica neste veículo a exposição ao GES.

No entanto, refere o supervisor bancário que não ficam no bad bank os “créditos sobre entidades incluídas no perímetro de supervisão consolidada do BES” e dos créditos sobre as seguradoras Tranquilidade, Tranquilidade-Vida, Esumédica, EuropAssistance e Seguros Logo, pelo que deverão passar para o Novo Banco. O Banco de Portugal passou ainda para o bad bank um total de 10 milhões de euros para “proceder às diligências necessárias à recuperação do valor dos seus ativos”. O bad bank, liderado por Luís Máximo dos Santos, mantém o nome BES mas não tem licença bancária.»

(Resumo da net, já não sei bem de quem...)


publicado por Fernando Delgado às 22:12
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Domingo, 27 de Maio de 2012

o achigã e a tragédia dos comuns

Fui à pesca e não pesquei nada… Fiquei parado, sentado numa pedra, de cana na mão, a olhar para um tipo (não, não me atrevo a chamá-lo pescador) com um saco cheio de achigãs: pequenos, médios, grandes, minúsculos…, enfim, de todos os tamanhos. Aparentemente o tipo estava feliz!

 

Há sítios onde nos sentimos sós e egoístas, e incapazes de perceber o mundo. Mas também é nestes sítios que por vezes se encontra um sentido para as teorias que já lemos ou aprendemos em qualquer lado, e não há nada de mais real do que sentir a verdade de uma teoria.

A Tragédia dos Comuns (1) é um texto célebre, de Garret Hardin, publicado em 1968 na revista Science (2) e que posso resumir mais ou menos assim:

  

Na utilização de pastagens comuns (3), alguns pastores descobrem que se aumentarem o seu rebanho, aumentam o lucro individual, enquanto o custo é dividido por todos. Numa situação extrema, todos os pastores tenderiam a aumentar o rebanho, originando uma sobreexploração dos recursos e a consequente tragédia, em que todos perdem.

  

O próprio Hardin considera que há muitas questões não técnicas à volta deste problema, para além da questão dos interesses público e privado, mas o que verdadeiramente me interessa é a complexidade do comportamento humano na utilização de recursos públicos.

  

Aquele tipo, com o saco cheio de achigãs, não conhece de certeza o texto de Hardin, nem deve fazer a mínima ideia do que ele significa. Apeteceu-me bater-lhe (ainda por cima olhava para mim com ar de vencedor de qualquer batalha...), mas também tive medo que ele me respondesse que pode pescar todos aqueles achigãs porque sabe que eu e outros pescadores não o fazemos, revelando-me da forma mais cruel que a tragédia não acontecerá.

 

Há dias em que não se pode ir à pesca. Não é por lei, é por auto-regulação.

 

 

(1) Parece que a expressão é mais antiga e atribuída a William Forster Lloyd, num livro sobre população, publicado em 1833.

(2) Ver texto aqui.

(3) O termo comum provém da expressão commons, que era utilizada para designar as pastagens, as florestas e os campos compartilhados por uma comunidade rural.


publicado por Fernando Delgado às 00:37
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Sexta-feira, 10 de Março de 2006

Freud, o pionés e o prego

Numa das caminhadas pretensamente fisioterapáticas que costumo fazer pela cidade, numa noite fria e chuvosa, encontrei um velho debruçado sobre um daqueles cantos das ruas onde tudo se junta: folhas das árvores, papéis, terra suja… O velho aparentemente tinha encontrado o que procurava: uma folha escrita à mão, com a tinta desbotada e com alguma lama à mistura. Olhou-me naquele silêncio de significado universal – isto é importante! -, dobrou cuidadosamente a folha em quatro partes, meteu-a no bolso e afastou-se lentamente.
 
Nunca mais o vi, mas agora, uns dias depois, apetece-me revisitá-lo no meu imaginário – naquele sítio onde a realidade olha a sua sombra tentando encurtar o espaço que as separa… – e entro pela janela numa enorme sala onde o velho está sentado, dolorosamente curvado sobre um livro. Ao fundo, num placard pendurado na parede, consigo descortinar a folha com as letras desbotadas, ainda ligeiramente suja de lama, presa com um pionés. Olha-me, e o seu rosto revela-me um conjunto de inquietações a que só os velhos conseguem transmitir alguma tranquilidade e ternura. “Sabes, há coisas que não devemos perder, mesmo que seja uma folha suja… É bom deixar-mos rasto daquilo que pensamos!” Sentei-me e ele levantou-se e começou a andar pela sala. “A vida não é simples, mas é possível retirar-lhe a ambiguidade que quase sempre a torna insuportável… Aquela folha tem um texto sobre essa ambiguidade, essa espécie de hipocrisia oculta... Vou ler-ta.” Tirou a folha do placard, sentou-se a meu lado, olhou-a longamente e, sem a ler, sussurrou-me: “O acesso ao poder…”, olhou-me, mas claramente não esperava qualquer assentimento, e continuou “…aos pequenos poderes, torna-nos insensíveis a um conjunto de princípios de que nunca devíamos abdicar. É a sofreguidão do imediato, do amanhã que é já agora, mesmo que seja evidente que as coisas estão incompletas e imaturas. Não há um conjunto de regras que sustentem a acção e muito menos o conjunto teórico de princípios que a fundamente. Não, no exercício do poder o que é fundamental é a sua manutenção e é desta sustentação até ao limite da hipocrisia que te queria falar…”
 
Levantei-me e saí pela janela. Fugi! Fugi, porque conheço a história (a realidade aproximou-se da sua sombra…) da folha suja presa no placard a que se vão acrescentando pionés, como se acrescentam peões num campo de batalha, até ela se tornar eternamente estável. A maior ambição da folha é desprender-se do placard, mesmo que venha a parar numa sarjeta suja (nunca as palavras escolheram o local de nascimento e morte…), e a do placard é manter esta espécie de simbiose mumificante. Ambas caem no equívoco de se pensarem autónomas. Ambas dependem do pionés e tudo, em última análise, está sujeito à arbitrariedade de quem dispõe da capacidade de manipular estes objectos de cabeça desmesuradamente oca e um biquinho estúpido. E como esses manipuladores gostam de deixar as impressões digitais na cabeça colorida do pionés, meu deus!... Mas a sua suprema ambição reside na capacidade de transformar o pionés num prego, ferozmente espetado no centro da folha, assegurando a sua eterna estabilidade e imutabilidade. Mesmo adivinhando o obsceno da folha esventrada, a tentação é tão grande que há cabeças que não resistem… E torna-se num vício!
 
(Tudo isto não passaria de um divertido e inútil jogo, se não estivéssemos a falar de pessoas. Tudo isto se resumiria à distracção perante folhas sujas e letras desbotadas, se não estivessem em causa estruturas sociais frágeis. Tudo isto se resumiria à defesa de um conjunto de interesses, se não estivesse em causa os princípios básicos da vida em sociedade... É pena que Freud, que eu saiba, não se tenha debruçado sobre a influência do pionés e do prego - objectos fálicos, sem dúvida! - no exercício do poder…).
ps : Chamaram-me a tenção para o pionese … De facto a palavra correcta é pionés - espécie de prego de cabeça larga e chata, geralmente usado para fixar papéis. Do fr . punaise. (Dicionário da Língua Portuguesa, 2004. Porto Editora).

publicado por Fernando Delgado às 23:06
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Segunda-feira, 26 de Dezembro de 2005

O Zé da Estina

O Zé da Estina sentou-se na pedra granítica no alto do monte, puxou da onça e da mortalha e lentamente enrolou o cigarro. Não tinha pressa, nada à volta sugeria qualquer urgência. O tempo repousava embalado na leve brisa que suavemente lhe afagava os cabelos grisalhos. Lá no fundo, o rio parecia parado, adormecido, embrulhado num azulado forte. A águia imperial dava voltas junto ao céu, apenas por dar, como se fosse aquela a sua forma de descansar. Acendeu o cigarro. Duas fumaças, um suspiro longo e o olhar fixo no horizonte. Fixo, mas perdido: “Porque buscam os homens essa coisa inútil que é o amanhã? Porque acham que o podem condicionar!..., mas o que ganham com isso? Que posso eu acrescentar a este mundo, para que regresse aqui amanhã e o sinta melhor?” Desviou o olhar para o rio. “Nada. A este mundo não posso acrescentar nada. A única maneira de fazer qualquer coisa de útil por ele, é não fazer nada. É mantê-lo assim, dentro de mim, sem mim.” Levantou-se, procurou a águia que continuava a voar em círculos, agora mais perto do céu, e começou a descer a encosta. Junto ao rio, como uma cobra que se liberta da pele inútil, tirou lentamente o fato que depositou num pequeno montículo em cima das botas, e atirou-se à água, nadando para a outra margem. Saiu da água e dirigiu-se para uma pequena cabana, meia escondida por um salgueiro. Nu, na penumbra da cabana, sentiu-se estranhamente confortável e feliz... Lá fora, na outra margem, a águia pousada junto às botas, às calças e à camisa, guardava o seu Zé da Estina, como um deus que zela pelos seus ícones. Se o luar testemunhou qualquer metamorfose, acabou por escondê-la no amanhecer do dia seguinte. A verdade, porém, é que o Zé da Estina nunca mais apareceu e a águia tem agora o hábito de pousar na pedra de granito, com o olhar vivo de sentinela fixo na cabana abandonada.

publicado por Fernando Delgado às 00:33
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Quarta-feira, 7 de Dezembro de 2005

Os Três Mosqueteiros

A história de Alexandre Dumas - Os três Mosqueteiros - pode resumir-se assim: Em 1625, D’Artagnan, um jovem fidalgo com aspirações a mosqueteiro, chega a Paris e inadvertidamente ofende três mosqueteiros, Porthos, Athos e Aramis, o que o leva a envolver-se num empolgante duelo. No entanto, mal este começa, os quatro são atacados por guardas do Cardeal. A bravura demonstrada por D’Artagnan leva-o à amizade com os mosqueteiros e, em breve, a perigosas aventuras por terras de França e Inglaterra, com o objectivo de deitarem por terra os planos do Cardeal Richelieu e sua temível espia Milady. "Um por todos e todos por um" será então o lema destes quatro bravos heróis que juntos irão lutar corajosamente pela justiça, honra e defesa da coroa!
  
Mas há uma outra história, julgo que contada por J. L. Godard, num filme de que não me recordo o título..., não sei sequer se é de Godard... (a minha memória tem já zonas de penumbra), mas como se costuma dizer: as palavras não são minhas, roubei-as não sei onde, mas sei para que as quero! A história é mais ou menos assim: Porthos, o (mais) bruto dos três mosqueteiros, era o especialista do grupo em detonações. Usava pólvora preta, doseava bem a carga e calculava ainda melhor o tempo de espera do detonador. Acendia o rastilho e afastava-se calmamente para um lugar seguro. Fez isto centenas de vezes, com êxito. Certo dia, depois de acender o rastilho e começar a afastar-se, vá lá saber-se porquê, olhou para os pés e descobriu que caminhava porque um pé ia para a frente, enquanto o outro ficava para trás..., depois o de trás ia para a frente, enquanto o da frente ficava para trás..., isto é, descobriu que caminhar resulta de uma situação de desequilibro. Parou estupefacto a olhar para os pés, lado a lado, agora em equilibrio... Já com a bomba a detonar e a montanha a cair-lhe em cima, ainda teve tempo de articular umas palavras já moribundas: “porra, a instabilidade é a única coisa que nos mantém vivos!”
 
(Suspeito que Milady, por entre lágrimas, terá dito: “a primeira vez que pensou, morreu!”)

publicado por Fernando Delgado às 01:19
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Quarta-feira, 20 de Abril de 2005

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"E se me pegares na mão e me levares para aquele lugar a que chamas utopia, eu vou. Não porque acredite nele, mas simplesmente porque deste lado já não existe nada. Nem mágoa, nem tristeza, nem desejo, nem sequer raiva. Aqui é cada vez mais o presente, sem o ontem ou o amanhã. Não acreditas? Então fala-me do teu mundo, dos teus sonhos... Sentes-te mal, como um minúsculo grão de areia?!..., não precisas dizê-lo, basta olhar para ti. Pensa um pouco!... Conta-me o que fizeste das laranjas que seguravas nas mãos, encostadas ao peito.
Sei que a lua adormeceu nas águas do lago e os teus cabelos esvoaçaram levemente. Da alma não me lembro, mas do corpo retenho o sorriso cúmplice do delito. Resta um perfume fugaz do teu gesto irreflectido - porque deitaste as laranjas ao lago, assustando os patos? Não te interessa, eu sei. Estás contente com o teu mundo, com as tuas pequeninas coisas, com os teus inúteis interesses. Mudaste, estás na idade da razão - ainda te lembras de Sartre? -, por isso sou benevolente. Era-me indiferente, se fosses só tu. Mas não! Estamos todos assim - acomodados, amorfos, quietos, velhos.
Sei que os tempos mudam e que a memória é uma coisa precária, um pouco como a espuma das ondas que se desfaz lentamente na areia da praia. Mas, quer queiras quer não, no fim resta sempre uma cicatriz que dói e, ingénua e lenta, condiciona ainda o teu pequenino mundo de interesses. Eu sei, por mais que o negues, que os dias são longos, mas resguarda neles um pedacinho e pensa no que fizeste dos princípios que dizias abraçar para toda a vida - passa um leve olhar sobre essa cicatriz! Não, não falo dos chavões que vorazmente fomos aprendendo em noites intermináveis de discussão e que nunca percebi muito bem se vinham da Revolução Francesa ou de um qualquer Maio intemporal. Falo das emoções, do sim em silêncio, do olhar cúmplice, do perfume das palavras. Falo da voracidade dos princípios e da angústia dos interesses.
Não, não me fales em ideologia - um conjunto de princípios não forma uma ideologia -, era só uma mão-cheia de princípios, suficientes para definir o nosso pequenino mundo. Percebes o que quero dizer? És capaz de me explicar a diferença entre esquerda e direita? Não, não me fales da União Europeia - é uma desculpa! E não me venhas com os argumentos do costume - a moeda única, o desenvolvimento do país ... É discurso televisivo, é discurso de interesses e nem quero saber se a discursos diferentes correspondem ou não os mesmos interesses (ou vice-versa, que sei eu?). São interesses e isso basta-me! E não me digas que o teu mundo cresceu, que já não é pequenino, porque é uma ilusão causada pela dispersão por inúmeras coisas inúteis - não confundas o teu espaço de emoções com o teu espaço de ilusões e não deixes que um se misture com o outro. Separa as águas, faz um apelo à diferença... A propósito, ainda roubas rosas nos jardins? Eu sei que estamos em final de século, provavelmente na sua década menos interessante, mas nada nos obriga a esta homogeneidade amorfa - lá por termos todos acesso à mesma biblioteca nada nos obriga a ler os mesmos livros e a ter as mesmas referências. Lembras-te que nos ensinaram a levar porrada e a dar a outra face - é um bom exemplo moral, dizia-se. Mas há sempre um dia em que nos irritamos e damos também um bofetão. Faz bem acontecer isto - é como acordar lavado, ainda que admitamos que o homem é um ser que erra, que mente mesmo quando ama, que sofre mesmo quando está feliz, que se torna incompleto quando não falta nada.
Tu dizias-me que o sonho é o lugar onde só cabe uma pessoa de cada vez. Eu nunca acreditei, por isso te utilizei para dizer aquilo que não sou capaz de exprimir no singular. Mas tu conheces-me. Sabes que vou ficando - não sei se por hábito se por opção -, até ao dia em que, de tanto olhar quem passa, adormeça e aceite o mundo tal como ele é. No dia seguinte, claro, porque o presente ainda é uma plataforma de rosas embrulhadas na saudade diáfana. Lembro-me que escolheste o mês da luz opaca para fugires à procura de outros mundos. Não te censuro, porque sei que juntos (nem imaginas a multidão que somos) faremos do céu - que é bem o silêncio da terra morna - um espaço enorme, florido e povoado de emoções. Como costumavas ler de um qualquer dos teus muitos papéis: "Gosto dos meus erros! Não quero renunciar à liberdade deliciosa de me enganar."
 
(Texto publicado na Gazeta do Interior, em Junho de 1997, sob o título "A voracidade tranquila dos sentidos" e que, por uma enorme preguiça..., aqui reproduzo. Até amanhã!)

publicado por Fernando Delgado às 00:03
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