«[...] Eu sou uma testemunha, um contador de histórias, um homem que passa a palavra. E, ao passá-la, ao contar tudo o que vi, vivo duas vezes.
Sempre tive esta, chamemos-lhe assim, deformação jornalística: tentar transformar tudo o que acontece, tudo o que vejo, tudo o que viajo e tudo o que vivo, numa utilidade literária ou jornalística concreta. Nunca viajei sem escrever: ir para ver e não contar a ninguém mais, aos que não foram e não poderão nunca ir, sempre me pareceu um desperdício, uma oportunidade não merecida. [...]» pp 13-14
É deste Miguel que eu gosto. Do Miguel na primeira pessoa, das histórias que conta, da escrita do real, mesmo ficcionado... (ver aqui).
«A escrita ensina-nos e convoca-nos à responsabilidade de entender que estar vivo não é um acaso inútil nem um almoço grátis. Toda a criação artística, de que a escrita faz parte, é uma responsabilidade indeclinável e não somente um dom de autocontemplação. Escrevemos, para celebrar a vida, não para resgatarmos a própria morte; escrevemos para os outros, não para nós próprios.[...]» pp 15.
É este Miguel que me convoca à leitura, mesmo quando a história é conhecida:
«[...] Um violinista tocou durante quarenta e cinco minutos à porta de uma estação de metro em Washington, enquanto o jornal [Washington Post] filmava toda a cena. Enquanto tocou, teve seis espectadores que pararam um pouco para o ouvir e recolheu trinta e dois dólares de gorjetas. O homem chamava-se Joshua Bell e é um dos maiores violinistas contemporâneos; o seu violino era um Stradivarius, avaliado em três milhões e meio de dólares; e o que tocou foram seis peças de Bach para violino, de dificílima execução e espantosa beleza. Eram o mesmo homem, o mesmo violino e as mesmas composições que, dois dias antes, tinham enchido a sala de concertos de Boston, com o bilhete mais barato a cem dólares. (...) Será que as pessoas só estão atentas à beleza das coisas no momento e no lugar previamente marcado para tal? Teria eu parado ao escutar o violino de Joshua Bell? Quero crer que sim, mas, na verdade, nenhum de nós o pode garantir.[...]» pp. 166-167.
Miguel Sousa Tavares. Não se encontra o que se procura. Clube do Autor, 1ª Ed.